ENCRUZILHADAS POSSÍVEIS PARA SONHOS DEMOLIDOS
Texto redigido por Lucas Inocencio Almeida para o projeto.
Os Povos e Comunidades Tradicionais de Matrizes Africanas representam um contínuo, no solo brasileiro, de civilizações africanas milenares trazidas forçadamente no período da escravidão transatlântica no Brasil. Os territórios que ocupam são caracterizados como espaços de vivência comunitária, sociabilidade, acolhimento, prestação de serviços sociais, de saúde pública, educacionais e culturais com saberes, fazeres e demais ofícios baseado em tradições ligadas, principalmente, a três matrizes culturais: os povos iorubá, banto e jeje, populações ainda hoje presentes em diferentes países entre os mais de cinquenta Estados do continente africano.
As Comunidades Tradicionais de Matrizes Africanas não são homogêneas, possuindo diferentes denominações para seus territórios tradicionais no país: terreiro, roça, barracão, casas, batuque, templo entre outras. As características dos Povos Tradicionais de Matrizes Africanas estão condicionadas ao lastro histórico que remete às origens culturais, geográficas e políticas das pessoas africanas escravizadas e traficadas para o Brasil. Durante o processo de escravização e no pós-abolição, os povos tradicionais no movimento de resistências, reconstruíram relações, associações e instituições próprias em solo nacional, através das memórias do corpo, da oralidade, dos conhecimentos, fazeres e produtos tradicionais trazidos consigo, reconstituindo seus sistemas culturais,políticos, econômicos, sociais e religiosos.
Os territórios tradicionais, como enuncia a PL Makota Valdina, são espaços físicos, constituídos pelos africanos e sua descendência no Brasil no processo de insurgência e resistência à escravidão e ao racismo, a partir tanto da cosmovisão e ancestralidade africanas como da relação desta com as populações locais e com o meio ambiente. Essas comunidades ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas transmitidos pela tradição, e podem ser encontradas no meio urbano ou rural, em vilas, bairros, favelas, sítios. São pontos de referência para um grande número de pessoas que se identificam pelo pertencimento a uma comunidade, a uma coletividade que comunga dos mesmos valores afrocentrados, diferenciada dos demais grupos sociais, mas de relevância irreversível e inquestionável para a garantia dos direitos fundamentais à memória e à verdade e o enfrentamento ao racismo na sociedade civil brasileira como um todo.
As Comunidades Tradicionais de Matrizes Africanas são repositórios do patrimônio cultural material e imaterial afro-brasileiro, que envolvem saberes, fazeres, ofícios, lugares, edificações, acervos, modos de vida, envolvendo diversas linguagens, línguas e sistemas estéticos e artísticos com significados ritualísticos, ou seja, culturais. Os Povos Tradicionais de Matrizes Africanas estão presentes por todas as regiões do país, expressando as diversas estratégias e formas de resistências de africanos escravizados e seus descendentes frente às violações e aos crimes de lesa humanidade, aos quais foram submetidos durante o periodo traumático da escravidão e que, ainda hoje, tem como seu principal legado o racismo, causando a discriminação sobre as Comunidades Tradicionais de Matrizes Africanas, os Povos Tradicionais de Matrizes Africanas e seus territórios. Em 2023, no Brasil, os casos de racismo religioso e intolerância religiosa cresceram 17.000% desde o ano de 2009.
De acordo com o levantamento realizado pela startup JusRacial, os tribunais brasileiros enfrentaram uma massiva de processos judiciais relacionados a casos de racismo religioso e intolerância religiosa, totalizando impressionantes 176.055 ações. O II Relatório sobre Intolerância Religiosa: Brasil, América Latina e Caribe, aponta que as religiões de matrizes africanas são as que mais sofrem com crimes desta natureza no Brasil. Contra elas, foram registrados 86 casos em 2020. De acordo com o referido relatório, no ano de 2021, as notificações de violações sobre os povos tradicionais de matriz africana cresceram acima de 270%, chegando a 244 casos.
Uma das fontes do Relatório é o Disque 100, do extinto Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, que registrou 966 casos de intolerância religiosa em 2021; 353, em 2020; e 477 em 2019. Além disso, no primeiro trimestre deste ano, a Polícia Civil de São Paulo registrou 181 casos de intolerância religiosa em todo o estado, número possivelmente subnotificado, já que muitas vítimas preferem não recorrer às autoridades para prestar queixa. O total representa 87,4% das ocorrências reportadas entre janeiro de 2019 e março de 2023, demonstrando que houve uma alta significativa ao longo dos anos e sinalizando que as pessoas podem estar tendo mais estímulo para comunicar violências.
A onda contÍnua de violências e violações aos direitos humanos contra Povos Tradicionais de Matrizes Africanas (POTMAs), assim como de seus territórios e comunidades, materializados em acontecimentos como a demolição e destruição dos acervos do Ilê Asé Odé Ibualamo, no ano de 2023, ressuscitam as discussões sobre o direito patrimônio cultural afro-brasileiro, direito ao meio ambiente, sobre as responsabilidades dos órgãos de preservação do patrimônio cultural em níveis federal, estadual e municipal na proteção desses espaços, e de todos seus aspectos patrimoniais materiais e imateriais.
A preservação do patrimônio cultural afro-brasileiro das Comunidades Tradicionais de Matrizes Africanas está diretamente ligada aos direitos fundamentais à memória e à verdade da Escravidão e do Tráfico Transatlântico de Pessoas Escravizadas no Brasil, sendo essencial para efetivação do combate ao racismo, do alcance a equidade racial, de justiça, reparação e não repetição desses atos. Os direitos à memória e à verdade estão intrinsecamente ligados aos direitos à personalidade ancestral, à identidade, à informação, à saúde pública, à educação, ao meio ambiente, ao patrimônio cultural enunciado no artigo 216 da Constituição Federal de 1988. Entre riscos, ataques, demolições dos quais os territórios das Comunidades de Povos Tradicionais de Matrizes Africanas estão suscetíveis, podemos utilizar diversos mecanismos na proteção, salvaguarda e preservação de seus espaços, acervos, memórias, saberes, fazeres, ofícios e modos de vida.
Entre as encruzilhadas de possibilidades para sonhos demolidos, pode-se valer do instrumento de Tombamento, do Registro, da Educação Patrimonial, dos Inventários, da criação de processos museológicos, museus e memoriais. O instrumento de Tombamento, já utilizado por órgãos de proteção ao patrimônio cultural como o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e o Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo (Condephaat). O tombamento é um ato administrativo, de reconhecimento por parte do Estado e da sociedade civil, da importância do bem cultural material reconhecido e inscrito nos Livros do Tombo. O bem tombado submete-se a um regime especial de normas que impõe limitações ao exercício de propriedade, com a finalidade de preservá-las. Como ferramenta de preservação, fomento e difusão do patrimônio cultural, à ação de tombar é um processo participativo com acúmulos de deveres para o Estado, a comunidade detentora do bem cultural, assim como, da sociedade como um todo. O Condephaat já inscreveu cinco Comunidades Tradicionais de Matrizes Africanas no Estado de São Paulo e o Iphan tombou nove territórios, todos localizados na região Nordeste do país, apontando a necessidade de revisionamento dessa política pública, objetivando maior compreensão e alcance de suas ações.
O instrumento de Tombamento é um recurso imprescindível para a salvaguarda das Comunidades Tradicionais de Matrizes Africanas, sobretudo em casos de desapropriação de seus territórios tradicionais, ameaças de infraestrutura causadas pela especulação imobiliária ou por ações irregulares de desenvolvimento infraestrutural de políticas estatais urbanísticas, extrativistas, de reutilização de solo, sem considerar as Comunidades Tradicionais, sua área envoltória e sua complexa relação com o meio-ambiente. Nesses casos, é emergente a abertura do pedido de tombamento provisório para a promoção de estudos técnicos, em conjunto com órgãos públicos de defesa do patrimônio cultural, visando o reconhecimento e inscrição definitiva do bem cultural, preservando-o dos atuais e futuros agentes de deterioração que os colocam em risco.
Outra ferramenta para a preservação dos patrimônios culturais presentes nas Comunidades Tradicionais de Matrizes Africanas é o Registro, instrumento legal elaborado para o reconhecimento e valorização do patrimônio imaterial brasileiro. Nesse caso, os ofícios, saberes, fazeres, modos de vida e lugares são registrados nos Livros de Registro, exigindo a elaboração de estudos técnicos, registros etnográficos, acompanhamento, revisionamento, difusão e apoios diversos para a manutenção desses bens patrimoniais imateriais. Assim como o tombamento, o registro tem que ser requerido pela comunidade ou um de seus membros, em conjunto com uma documentação que justifique, a importância do registro de determinado bem para o país, estado federativo e/ou município.
A Educação Patrimonial, já praticada pelas Comunidades Tradicionais de Matrizes Africanas, se constitui em todos os processos educativos que possuem como foco a preservação, reconhecimento, identificação e difusão do patrimônio cultural. Formas de potencializar essas ações educativas se dão a partir de parcerias com outras instituições educacionais, culturais e saúde pública como escolas, unidades básicas de saúde e museus, a realização de inventários participativos com os membros das comunidades, entre outras possibilidades.
Ademais, os inventários são aliados fundamentais na preservação das Comunidades Tradicionais e de seus territórios. Como instrumentos de preservação que buscam identificar e registrar manifestações e bens de interesse social na preservação, de natureza material e imaterial. O principal objetivo dos inventários é a composição de bancos de dados que possibilitem a salvaguarda, organização e recuperação informacional, assim como, processos de pesquisa, gestão, comunicação e educação. O Iphan instituiu no ano de 2000, o Inventário Nacional de Referências Culturais (INRC), com a função de estabelecer uma metodologia de preservar os referenciais culturais de um determinado território. Os projetos do INRC são distribuídos por regiões do País e pelas Superintendências Estaduais do Iphan, sendo classificados como realizados e em andamento, sendo necessário sua solicitação via Iphan.
A criação de processos museológicos, memoriais e museus nas Comunidades Tradicionais de Matrizes Africanas é outro mecanismo para a salvaguarda das comunidades, seus bens patrimoniais imateriais e materiais e de seus acervos. O mecanismo técnico dos processos museológicos consistem na conservação, documentação, organização e sistematização das informações; a pesquisa, a comunicação museológica por meio de publicações ou exposições e ação educativa, potencializando os fazeres já realizados nas Comunidades Tradicionais de Matrizes Africanas.
Outras possibilidades para o alargamento de mecanismos de preservação do patrimônio cultural afro-brasileiro presente nos territórios tradicionais são: a criação de observatórios; implementação e fomento de redes para articulação em níveis municipal, estadual, federal e internacional; criação e revisão de Portarias dentro dos órgãos públicos de defesa ao patrimônio cultural; à realização de mapeamentos das Comunidades Tradicionais de Matrizes Africanas no Brasil; a consolidação, a promoção de intercâmbios entre as Comunidades Tradicionais do Brasil e do continente africano; tramitação e aprovação de Projetos de Lei que atendam as demandas de salvaguarda dos bens patrimoniais dos Povos Tradicionais de Matrizes Africanas; o reconhecimento e registro dos sítios arqueológicos ligados aos POTMAs.
É importante ressaltar que a compreensão da preservação dos territórios e Comunidades Tradicionais, perpassam pela aplicação de mecanismos de metodologias que preservem documentos e sítios detentores de reminiscências históricas das antigas Comunidades Tradicionais de Matrizes Africanas, suas referências culturais, modos viver, saberes e fazeres ancestrais, em ação conjunta do Poder Público, entidades privadas, tendo os POTMAs como figuras basilares na tomada de decisões. Assim, a partir da combinação de ferramentas e conhecimentos, se formam caminhos de confluências possíveis a serem seguidos nas encruzilhadas do direito ao patrimônio cultural e aos direitos à memória e à verdade do período escravocrata no Brasil reparando sonhos demolidos em cada violação aos direitos humanos dos Povos Tradicionais de Matrizes Africanas, frente ao crime contra humanidade da escravidão e do tráfico transatlântico de pessoas escravizadas, reconhecido na Conferência de Durban, em 2001, freando o racismo, como seu principal legado a ser enfrentado para a efetivação do Estado Democrático de Direito.
Desse modo, reconstruir sonhos demolidos significa o reconhecimento da contribuição das populações africanas e de seus descendentes, e das Comunidades Tradicionais de Matrizes Africanas e seus povos na construção do Brasil; alcançar a equidade racial através da valorização da ancestralidade que estabelece vínculos afetivos e identitários entre o continente africano e o Brasil; é reparar os crimes de lesa humanidade e as violações aos direitos humanos acometidos no processo de escravização de africanos traficados cometidos pelo Estado brasileiro, por pessoas físicas e por instituições da sociedade.