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Todas as falas atribuídas a integrantes da comunidade do Ilê Asé Odé Ibualamo e do Ilê Axé Nitá Nirê, em aspas ou como citação indireta, foram colhidas durante entrevistas e atividades realizadas ao longo do ano de 2023 pela equipe de pesquisa do projeto “A destruição do terreiro Ilê Asé Odé Ibualamo: patrimônios e caminhos de reparação”. Parceria: CAU/SP, Edital de Chamamento n. 005/2023, Termo de Fomento n. 020/2023. Realização: Escola da Cidade – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Plataforma de Pesquisa Nas Ruas: territorialidades, memórias e experiências.

ORIGENS AFRICANAS E ASSENTAMENTOS BRASILEIROS

João Evangelista de Oliveira, avô materno de Mãe Zana – atual Ialorixá do Ilê Asé Odé Ibualamo –, é descendente de africanos trazidos como escravizados de Angola. Seu avô por parte de pai também veio de África, trazido da Nigéria para o Brasil como escravizado para trabalhar em plantações de café. Assim, Mãe Zana herdou uma linhagem que tem tanto ascendência iorubana como banto. Essas duas tradições permearam o terreiro ao longo do tempo, demarcando práticas, materialidades e uso de termos diversos.

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Mapa da travessia transatlântica das linhagens jeje, iorubá e banto, dos portos africanos para Canavieiras, Porto Seguro e Camacã, na Bahia, até chegar no município de Carapicuíba, em São Paulo.

Fonte: João Pedro Manccini.

A história do terreiro de candomblé que hoje Mãe Zana comanda teve início na década de 1980, a partir da tradição iorubana do Babalorixá João Canavieiras – como também era conhecido seu avô, por ter nascido na cidade homônima, no sul da Bahia – e de sua esposa Makota Maria de Lourdes Evangelista (Dona Lourdes).

Foi ali que cresceu Dona Marina Clarinda Oliveira de Jesus, Mãe Caçaile, mãe de Mãe Zana, mais conhecida como Dona Nega, nascida em 25 de abril de 1954, no mesmo município baiano de Canavieiras. Desse espaço sagrado, emanou a tradicionalidade do terreiro Ilê Asé Odé Ibualamo, no qual Mãe Zana é a quarta geração da família consanguínea tradicional e já tem o seu herdeiro, Ofacilomy, que será a quinta geração. Até hoje Mãe Zana tem familiares no Sul da Bahia, em Canavieiras e São João dos Panelinhas, e viaja regularmente para a região.

No final da década de 1980, Dona Marina veio para o município de Carapicuíba, na Região Metropolitana de São Paulo, para instalar o terreiro. A primeira tentativa foi no bairro de Vila Dirce, na rua das Pedras, como um “puxadinho” da casa de sua tia. Mas as frequentes ameaças de despejo dos moradores acabaram por frustrar a fundação. Foi então na rua Airão, no bairro de Vila Silviania, que encontrou um espaço ideal para a construção do Ilê, hoje considerado Unidade Territorial Tradicional (UTT) no município.

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O terreno tinha as condições necessárias para a instalação do Ilê, como proximidade com águas, matas, folhas e gente. No período de busca do local, entre os anos de 1988 e 1989, Mãe Zana se recorda que a região era pouco povoada, sendo ocupada principalmente por famílias “bem antigas ligadas à cidade”. Por volta de 1995, João Canavieiras veio para Carapicuíba instalar o terreiro, que permaneceu no mesmo local por quase 30 anos, até ser destruído pela Prefeitura de Carapicuíba, em 15 de dezembro de 2022.

Acima, João Canavieiras e a tia de Mãe Zana, Glória. Ao lado, seu avô paterno, Manoel.
Fonte: acervo da comunidade.

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No centro da foto, o avô, João Canavieiras, a avó, tios e tias de Mãe Zana, que está à esquerda, no colo de sua tia Marli, de regata verde. À esquerda do avô, de branco,  está Maria, sua Filha de Santo. Atrás do avô, no centro da imagem, o tio Pedro; na ponta direita, o tio Brás; e na esquerda, próxima a Mãe Zana, sua tia Nalva.
Fonte: foto enviada pela família de Mãe Zana.

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Mãe Zana, aos seis anos de idade.
Fonte: foto enviada pela família de Mãe Zana.

MÃE NEGA E A INSTALAÇÃO DO TERREIRO EM CARAPICUÍBA

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Carapicuíba na metrópole.
Fonte: João Pedro Manccini

O terreiro teve duas configurações principais: uma que vigorou principalmente ao longo dos anos 1990 e início da década seguinte; e outra que foi resultado das adaptações realizadas a partir do início das obras de canalização do córrego do Cadaval, especialmente de 2004 em diante. Durante todo o período de gestão de Mãe Nega, a casa esteve com sua primeira configuração. Já com Mãe Zana, o terreiro passou cerca de dez anos em condições semelhantes, até ser atingido pelas mudanças.
 

No final da década de 1980, Dona Marina Clarinda Oliveira de Jesus fundou o terreiro de candomblé Ilê Asé Odé Ibualamo, depois de ter comprado uma casinha de madeira e um terreno de pouco mais de 200 m² com duas entradas: uma pela rua Airão e outra pela avenida Felisberto Pereira Santiago (vias transversais), na Vila Silviania, município de Carapicuíba (São Paulo). Mas, como costuma ocorrer na maioria das regiões periféricas das cidades brasileiras, não houve nenhum registro de compra do lote, tampouco foi passada qualquer escritura em cartório ou outro registro legal. Mãe Nega e Mãe Zana – que então “já fazia alguns trabalhinhos” – conseguiram reunir algumas economias e comprar o terreno de um senhor que acabara de ficar viúvo. Na época, a edificação do lote era “um barraquinho de madeira com chão de assoalho”.

No momento de fundação do Ilê, o acesso principal ao complexo era pela avenida, existindo ainda uma entrada secundária pela rua Airão. Dali, saindo da avenida, havia uma “estradinha” que chegava ao terreiro propriamente, com casas em volta, viradas para as ruas e com o rio passando por trás. A frente do terreiro, na chegada por essa “estradinha”, era marcada por um muro grande com uma abertura. O corpo d’água passava à esquerda de quem olha essa entrada de frente.

Desenho feito por Mãe Zana, em novembro de 2023, na atividade de realização de maquete do terreiro. O desenho começou pelas ruas e casas contíguas e, disso, a Ialorixá chegou aos elementos do Ilê. O nível de detalhes e a importância dessa materialidade ficam visíveis na diferença de escala entre os itens externos e os internos ao terreiro.
Fonte: equipe de pesquisa.

O terreno se localizava às margens do córrego do Cadaval, cujas águas limpas corriam como um pequeno fio, com árvores da Mata Atlântica, muita vegetação e árvores frutíferas – configuração determinante para a escolha dos orixás. Nessas águas de Oxum, as crianças brincavam e, pelo barulho da corredeira, sabia-se quando vinha a chuva. O barro das margens do corpo d’água era usado para fabricação de peças e utensílios. Pela presença de vegetação e proximidade com o riacho, Dona Marina considerou aquele um local propício para instalar o Ilê, já que tinha todo o necessário para a reprodução cultural e tradicional dos povos de matriz africana.

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Desenhos feitos por Tomaz Oliveira dos Santos, Filho de Santo de Mãe Zana. Odé e Oxum, respectivamente. 

Fonte: produção realizada por Tomaz Oliveira dos Santos para o projeto.

A partir daí, Dona Marina – ou Mainha, como Mãe Zana se remete a ela – começou o processo de configuração do espaço: manteve a vegetação, identificando as ervas medicinais e sagradas tradicionais; conservou as árvores, relacionando-as com os orixás; e fez o primeiro salão, onde aconteciam as festividades. A construção não era mais de madeira, mas toda de alvenaria, apenas com piso de madeira. Uma laje suspensa foi construída “para que a gente não magoasse a terra”, segundo a Ialorixá.
 

Na sequência foram feitas as demais casinhas. Logo na entrada, estavam: Casa de Exu, Casinha das Almas (não uma casa propriamente, e sim um assentamento baixo), Casa do Tempo ou do orixá Iroko (também uma espécie de escada e não uma edificação fechada) e roncó. Mais adiante ficavam originalmente três quartos: um para de Dona Marina (onde Mãe Zana também dormia), um para seus filhos biológicos e outro para os Filhos que chegavam. Do barraco de madeira, o complexo foi sendo acrescido de novos cômodos, agregando assim mais funções e pessoas.

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Desenhos feitos por Tomaz Oliveira dos Santos, Filho de Santo de Mãe Zana, dos orixás Oxalá e Oxumaré, respectivamente.

Fonte: produção realizada por Tomaz Oliveira dos Santos para o projeto.

Na Casa de Iroko, ficava fincado o mastro do terreiro e o espaço continha ainda os ibás. Não havia a árvore de Iroko, mas uma espécie de “escadaria”, segundo descrição de Mãe Zana e Dona Sueli (última Iabassê do Ilê), ficavam enterrados os assentamentos e hasteada a bandeira do povo banto, de cor branca. As casinhas e assentamentos margeavam uma área aberta do Ilê, de chão de terra, em que aconteciam sambas de roda. Nessa terra havia também um pé de quarana – “aquela planta fedida”, diz Mãe Zana em meio a risadas –, junto à Casinha das Almas, onde a Iabassê Sueli se lembra de recolher folhas a pedido da Ialorixá. No terreno, havia outras ervas, como capim-cidreira, cuidadas por Dona Nega.

Dessa área externa, viam-se duas janelas grandes de madeira, na parede do barracão, edificado em alvenaria. Ao entrar no barracão, era possível ver uma sequência de cômodos à esquerda: quarto de santo, quarto de jogo e quarto para uso dos Filhos e Filhas. O quarto usado para trocas de roupa e outras atividades de apoio tinha uma janela voltada para o fundo do vale, onde corria o córrego do Cadaval, enquanto o quarto do jogo possuía apenas uma janela bem pequena, de madeira. O quarto sagrado guardava os ibás dos santos.

Mãe Zana: Nesta foto, é possível ver os fundos do terreiro [área contígua à cozinha, mais baixa, acessada por alguns degraus] que virou frente posteriormente com o avanço das obras [de canalização do córrego do Cadaval]. Ogan Danilo, Ofacilomy e Vinícius, de Xoroquê.

Fonte: acervo da comunidade.

Saindo do barracão, acessava-se uma sala grande – “um vão grande assim”, segundo Mãe Zana –, com um banheiro e área de serviço, suspensa por um piso de madeira. Passando, chegava-se à cozinha, com uma grande janela na parede lindeira à viela que sai da rua Airão. Na configuração final do terreiro, após a perda grande parte do conjunto em função das obras no córrego, essa viela passou a ser a entrada principal e a cozinha, que antes marcava os fundos do complexo, tornou-se sua frente. A cozinha era contígua a um espaço aberto, com pés de árvores frutíferas, como manga, abacate e banana, e havia ainda uma área na parte mais baixa do terreno, que formava um quintal. Mãe Zana lembra-se com detalhes da existência da bananeira pois, certa vez, colocou nela um periquito, pertencente ao Ogan Danilo, e o animal morreu – hoje a história é contada em meio a risadas ao rememorarem a vivência no Ilê.
 

Durante a gestão de Dona Marina à frente do terreiro, a família biológica morava na edificação. Dois aspectos marcantes foram perdidos a partir do início dos trabalhos da Prefeitura: a abundância de plantas e árvores e a relação com as águas. Segundo Mãe Zana, “O barracão na verdade era cercado por vegetação” e havia água correndo na viela dos fundos, contígua à cozinha, por conta da existência de uma mina na rua. Uma das primeiras intervenções públicas, realizada pela Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp), foi uma espécie de tamponamento da viela, com blocos maciços, para evitar que a população jogasse esgoto ali – deu-se assim o sepultamento do fio d’água.
 

Uma característica do Ilê desde o tempo de Mãe Caçaile, no entanto, manteve-se até a demolição operada pela Prefeitura: a comunidade do terreiro alimentava uma relação de afetividade e de troca com a comunidade ao redor, formada principalmente por “senhores e senhoras”, com as quais Dona Nega identificava-se por serem também principalmente nordestinos: “E um nordestino reconhece o outro pela fala, pelo jeito, pelo acolhimento”. Naquele momento, não havia muitos espaços propícios para que essas famílias se conectassem, o que fez do Ilê um ponto de encontro importante. Muitos vizinhos e vizinhas integraram-se ao terreiro, virando Filhos e Filhas de Santo. Eram eles também que mantinham Mãe Nega acompanhada, uma preocupação de sua família, por ser epiléptica.

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Mãe Zana: Mãe Nega, em foto da década de 80, em uma das festividades do caboclo Sultão.
Fonte: acervo da comunidade.

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Registro fotográfico remanescente de festa no terreiro, durante a gestão de Mãe Nega.

Fonte: acervo da comunidade.

Ilê e comunidade tornavam-se uma coisa só: “a favela é o terreiro, o terreiro é a favela”, comenta Mãe Zana. “As pessoas iam pro terreiro pra comer bem, ouvir boa música, dançar, festejar e se divertir. O toque do atabaque e a comida boa, com qualidade e fartura, aproximava as pessoas da comunidade do terreiro. Quando o terreiro está dentro da comunidade, o acolhimento é outro. É um espaço dentro do perímetro urbano que promove a verdadeira cidadania, porque você consegue viver de verdade.” Parte dos moradores da área tiveram destino semelhante ao do terreiro e precisaram deixar suas casas em função das consequências das obras públicas, mas ainda há pessoas que já habitavam o entorno no período de Dona Marina. Mãe Zana recorda-se de Doraci, moradora da mesma casa desde antes da instalação do terreiro.
 

Em 4 de dezembro de 1997, Dona Nega, que viveu alguns anos doente, ocupou o seu lugar junto aos ancestrais e deixou o terreiro como legado para sua filha primogênita, a Ialorixá Mãe Zana de Odé, com a obrigação de proteger e manter a unidade tradicional, numa cidade que passava por violentas transformações.

O TERREIRO NO TEMPO DE MÃE ZANA

Após a passagem de Mãe Nega, em 1997, Mãe Zana de Odé (ou Odecidarewa), tornou-se a quarta geração da família consanguínea e tradicional do Ilê. Muitas mudanças vinham acontecendo no espaço do terreiro desde sua configuração inicial, em função do começo das intervenções do poder público no espaço, especialmente relacionadas aos corpos d’água e à abertura de vias de tráfego. A cada etapa das obras da Prefeitura da canalização do córrego do Cadaval, o Ilê perdia espaços e alterações eram feitas pela própria comunidade do terreiro para adaptar os usos e funções ao terreno reduzido. Entre destruições e reconstruções ocorridas desde que assumiu a gestão do Ilê, conta Mãe Zana que o trabalho foi coletivo:

Todo mundo construiu um pouco daquele terreiro. Por isso que eu falo: o terreiro não tem como ficar mudando de um canto pro outro, porque a relação que você cria não dá pra você criar em qualquer lugar. Tem toda uma característica que é envolvida na construção do terreiro. A comunidade é construída pela mão de todos. Nós não temos uma construtora que dá um projeto e vai lá e faz o terreiro. O terreiro é feito pela necessidade de acomodar a quantidade de gente que a ele pertence. O terreiro é meio que uma faculdade, é uma casa de passagem, de aprendizagem, que dá continuidade à ancestralidade existente.
 

Do terreiro originalmente configurado por Mãe Nega, boa parte se perdeu: especialmente os espaços mais próximos à avenida Felisberto Pereira Santiago, em que localizava o acesso principal da casa. O pequeno caminho que levava ao portão, a área aberta onde ocorria o samba de roda e estavam Casa de Exu, Casinha das Almas e Casa do Tempo, o roncó e parte do barracão foram destruídos, assim como as moradias de parte da vizinhança.

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Mãe Zana desenha o local de acesso principal do terreiro em sua primeira configuração, pela avenida Felisberto Pereira Santiago, com as moradias existentes. As casas marcadas com X foram as primeiras a serem demolidas no início das obras de canalização do córrego do Cadaval, resultando na expulsão dessa população.

Fonte: equipe de pesquisa.

Outras mudanças aconteceram no terreiro, em função da miscigenação das linhagens de Mãe Zana, que incluem banto, por parte de mãe, e iorubá, por parte do avô. Quando assumiu o Ilê, a Ialorixá ornamentou o barracão com pinturas nas paredes, representando orixás, uma prática própria dos povos ketu. Por ser iniciada com povos iorubanos, Mãe Zana tem essa habilidade, algo que os Filhos levam adiante.

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Interior do Ilê com pinturas e as coisas cobertas.JPG
Interior do Ilê com pinturas.JPG

Desenhos nas paredes do barracão, seguindo a tradição iorubana, herdada do avô de Mãe Zana, João Canavieiras. Essas fotos foram feitas pouco antes da demolição do terreiro, em dezembro de 2022.

Fonte: acervo da comunidade.

A diminuição do espaço fez com que todas as funções antes alocadas em áreas variadas precisassem ser contidas dentro do barracão. A principal perda foi de áreas abertas, limitando o acesso a plantas e ervas. Além disso, a maioria dos assentamentos na configuração original estavam nessas áreas, quase todas devastadas. Foi necessário demolir boa parte das construções para reformar o espaço, o que fez com que Mãe Zana passasse mais de um ano morando de aluguel em outro imóvel, na rua Gelmiro Smaniotto. Do terreiro remanescente, foi deixado apenas um pequeno espaço para guardar atabaques e ibás, enquanto a comunidade juntava recursos para as obras.

O padrinho de Mãe Zana, falecido recentemente, ficou no terreiro para tomar conta. Ao mesmo tempo, a comunidade foi reconstruindo seus espaços sagrados, buscando uma nova configuração, que desse conta de acolher a todas e todos. A coletividade e a rede de relações e linhagens foi, mais uma vez, decisiva para a empreitada: um dos pedreiros que trabalhou nas obras veio da Bahia. Os trabalhos foram difíceis, e Mãe Zana lembra de alguns elementos não darem certo, como a cumeeira, que precisou ser refeita.

A viela, antes entrada dos fundos junto à cozinha, passou a ser o único acesso ao terreiro, já com a vegetação reduzida. O sufocamento veio também pelo aumento da ocupação na região, com a chegada de novas famílias à vizinhança. Como ninguém tinha registro e propriedade dos imóveis – nem mesmo a comunidade do Ilê –, era necessário ceder partes do terreno aos que chegavam. Apesar de continuarem se referindo ao Ilê como “terreiro”, o complexo já não possuía mais um terreiro propriamente, ou seja, um quintal, espaço aberto, com chão de terra.

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Tomaz: Exú é a ligação do terreiro com a comunidade, dono da tecnologia. Ele é a movimentação, a circulação e a articulação do nosso ilê. Chamado o dono dos caminhos, senhor das encruzilhadas, como diz o itam: "Exú matou um pássaro ontem com a pedra que só atirou hoje".

Fonte: produção realizada por Tomaz Oliveira dos Santos para o projeto.

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Tomaz: Oya mãe dos ventos senhora das tempestades essa mulher como queira representar nosso ilê traz sempre a firmeza na sua elegância e delicadeza de uma borboleta mas também é quem carrega a força de um búfalo.

Fonte: produção realizada por Tomaz Oliveira dos Santos para o projeto.

A reconfiguração da casa para dar conta de aglutinar todas as suas funções exigiu criatividade, e a comunidade chegou a construir uma escada, que subiria por cima da laje de um quarto sagrado. A construção foi feita pelo pai biológico da Ialorixá, e o andar superior serviria para acessar um quarto para guardar roupas de santo, uma cozinha e uma lavanderia, deixando o térreo inteiro para o barracão. Não houve tempo de dar prosseguimento a essa reestruturação.

Pinturas de orixás no barracão, realizadas pelo coletivo do Ilê. No destaque, Mãe Zana fazendo os desenhos.

Fonte: acervo da comunidade.

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Na última atividade realizada no Ilê Asé Odé Ibualamo antes de sua destruição física, é possível ver a reunião da comunidade, a presença das crianças e a distribuição de alimentos e brinquedos.

Fonte: acervo da comunidade.

Novos assentamentos foram feitos na área próxima à entrada, junto à viela: Ogum Xoroquê, Exu, Babá Egun, além de vasos e gaiolas para os Orôs. No barracão, ficavam um atabaque e o Intoto. Sobre essa configuração, quem se lembra melhor é Derick, Filho de Santo que não chegou a conhecer o formato anterior do terreiro. A nova Casa do Tempo não tinha mais a bandeira, tradição banto, mas são mantidos os ibás. Os cômodos mantinham-se espaçosos, e o pé-direito (altura do chão ao teto) do barracão era de cerca de 4 metros, sendo esse o cômodo mais alto, por ser de telhado em vez de laje, como nos demais.

O rio, no entanto, já era bastante diferente: “poluído”, resume Mãe Zana em uma palavra. A água passou a ser pouco utilizável. Antes, no período de construção do Ilê em sua primeira configuração, essas águas foram usadas em todas as obras de ampliação e era possível sentir o “cheiro de chuva”. Agora, têm odor forte quando chove muito e ficam vermelhas periodicamente, pelo despejo de produtos químicos rio acima.

Até o começo das obras, o rio seguia seu curso orgânico e a região não sofria com enchentes. Com a canalização, o volume de água aumenta pelo escoamento mais rápido, e isso dispara um processo de cheias e erosão no terreno. Mãe Zana, a Iabassê Sueli e Bryan – sucessor e quinto na linhagem do terreiro – contam de inundações rápidas e violentas no período de chuvas, já durante os anos 2000. Em uma ocasião, a Ialorixá tinha acabado de chegar em Itaparica, na Bahia, para onde foi de carro, e recebeu a notícia de que o Ilê estava debaixo d’água. Ela havia ido para o culto de Babá Egun e precisou voltar de avião imediatamente. Dona Sueli diz que a altura das águas batia em sua cintura.

A comunidade perdeu documentos, geladeira, botijão e outros itens, além de precisar se proteger do risco de afogamento. Vinícius, Filho do terreiro e então criança, foi colocado sobre um balcão, para maior segurança. Em meio a risadas colhidas com o distanciamento do tempo, eles contam que perderam ainda 700 reais, dinheiro guardado para o Caruru de Cosme e Damião e que estava em um caderno. Mas não foi a água que levou a pequena poupança: o irmão de Mãe Zana, acreditando tratar-se de material perdido, em meio a tanta destruição e lama, atirou o caderno no lixo.

Algumas fotos e papéis do Ilê foram encontrados, ao que se sabe, por um casal em situação de rua, que ocupou uma das casas desocupadas pela Prefeitura para as obras. Uma vizinha viu o casal colocando itens em uma vegetação, questionou-os e percebeu que eram pertencentes a Mãe Zana. O material deve passar por restauração.

Fonte: acervo da comunidade

Dona Sueli ficou traumatizada. Toda vez que começava a garoar, ela pensava no barracão e ligava para Madrinha, como se refere a Mãe Zana. Bryan, Ofacilomy do Ilê, se recorda de que, ao primeiro sinal de chuva, começavam a colocar para cima os móveis e pertences do terreiro. Ele conta:

Lembro até hoje, eu tava dentro do quartinho com os meus primos, e a gente viu a água descendo pelo chão. Quando a gente virou, eu ainda falei, ‘Nossa, derrubaram água do Intoto’, que tinha no meio do barracão. Fiquei olhando, foi coisa de cinco minutos, assim, já era.

A partir de meados de 2004, teve início a ameaça da política de desenvolvimento urbano com foco na realização de grandes obras, financiada pelo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), promovido pelo governo federal. Desde então, ao longo de todo o processo de resistência para a preservação do Ilê, Mãe Zana acirra sua luta como ativista pelos direitos dos povos de matriz africana, articulando parcerias com várias instituições nos âmbitos municipal, estadual e federal.

No entanto, a Prefeitura de Carapicuíba, apesar das lutas de resistência, desconsiderou a sacralidade e a importância do terreiro para a comunidade e, num gesto claro de racismo estrutural, institucional e religioso, deu continuidade à obra de canalização do córrego do Cadaval, cujo resultado foi a completa demolição do terreiro, em 15 de dezembro de 2022, sem que a comunidade pudesse resguardar seus pertences. Em pouco tempo, só se via escombros e ruínas deixados pelas retroescavadeiras. ”Não temos mais como resgatar nada do que ficou lá. Foi tudo perdido: a minha hierarquia e heranças da minha família. É uma violência surreal”, lamenta Mãe Zana.

MEMÓRIA E MATERIALIDADE: RECONSTRUIR EM PALAVRAS E MAQUETES

Como registrar e patrimonializar uma materialidade destruída? Assim como diversos terreiros, quintais, quilombos e outros espaços produzidos e vividos por povos de matriz africana, o Ilê Asé Odé Ibualamo enfrentou uma série de violências, resultando na demolição completa de tudo aquilo havia sido construída acima do solo por sua comunidade, ao longo de décadas. Essas perseguições são parte de sua história, ainda que a resistência não seja o único elemento que configura esses espaços, marcados pela criação, pela alegria, pelo apoio mútuo e pela religiosidade.


A maior parte dos registros dessas características, assim como das edificações e naturezas do terreiro, se perdeu com a destruição sofrida. Fotos e documentos foram soterrados, rasgados e esfacelados pelas máquinas, tornando-se parte do entulho das obras. Algumas fotografias chegaram a ser encontradas por pessoas em situação de rua, que entraram no terreno após a demolição, e esses itens acabaram sendo entregues a Mãe Zana posteriormente, por meio de uma vizinha. O material, em péssimo estado de conservação, com sinais de umidade e partes desintegradas, passará por processos de recuperação, oferecidos por profissionais de arquivística e museologia, em parceria com a comunidade do Ilê. Mas grande parte dos pertences físicos do terreiro desapareceu sem retorno. Essa situação não é incomum para muitas outras famílias brasileiras, habitantes de regiões sujeitas a alagamentos e de casas sem documentação legal, que passam por reintegrações de posse, enchentes, incêndios e outras adversidades, indissociáveis do modelo de ocupação e planejamento das nossas cidades.


Seria equivocado dizer que esses grupos – pessoas negras, pobres, periféricas – não têm costume de constituir seus acervos pessoais, familiares ou comunitários. Isso ficou evidente quando foi realizada a atividade nomeada “dinâmica de arquivo informal”, em que as pesquisadoras solicitaram aos agentes da comunidade que trouxessem materiais considerados significativos do Ilê para operarem como suportes de memória e registro material. Na ocasião, Mãe Zana, Bryan e Danilo trouxeram uma caixa com centenas de documentos, referentes à organização das atividades coletivas, à redação e proposição de políticas públicas de segurança alimentar e, especialmente, à distribuição de cestas básicas, importante ação regular da rede de terreiros de Carapicuíba, na qual a Ialorixá é figura central. A atividade mostrou a necessidade de ampliação de programas colaborativos entre grupos organizados, meio acadêmico e entidades museais e arquivístivas, de modo a fomentar a proteção desses acervos informais, reconhecendo sua relevância, sem contudo extraí-los de seus contextos de significação e uso.


Parte da proposta deste projeto era enfrentar diretamente a violência simbólica da falta de documentação e registro de populações que vivem muitas vezes na chamada “informalidade” – com especial atenção às consequências para os processos de patrimonialização. Como forma de documentar as edificações produzidas pela comunidade do terreiro, em seu diálogo com as contingências impostas pelo Estado, pela polícia e por outros grupos sociais, foi realizado um processo de reconstituição da materialidade a partir de conversas, retomada de memórias, reunião de fotos e feitura de desenhos e uma maquete. Essa atividade aconteceu principalmente em uma oficina realizada na varanda da casa de Dona Sueli, última Iabassê do Ilê, com a participação também de Mãe Zana, neto e neta de Sueli, Tomaz, Derick e as pesquisadoras da equipe do projeto, Glória, Amália e Sarah.

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Em maio de 2023, os agentes da comunidade detentora Mãe Zana, Bryan e Danilo generosamente apresentaram e descreveram parte do conjunto documental remanescente do Ilê Asé Odé Ibualamo, na atividade denominada “dinâmica de arquivo informal”. São papéis com anotações a mão da Ialorixá, cartazes de eventos, registros das famílias atendidas pela distribuição de cestas básicas na cidade e outros documentos que registram a história do terreiro, da cidade de Carapicuíba e dos povos de matriz africana em todo o país.
Fonte: equipe de pesquisa.

Na ocasião, foram levados materiais de papelaria (base de isopor, papel crepom, papel triplex, tintas acrílicas, papel sulfite, lápis de cor, pincéis e outros) para darem suporte à criação. A pedido de Mãe Zana, foram disponibilizados também pacotes de argila que, em princípio, serviriam para fazer paredes e representações dos orixás, mas acabaram sendo usados apenas para esse último fim, já que as paredes ficavam pesadas demais. Mãe Zana e Sueli trouxeram também outros materiais, como palhas e búzios, que faziam parte das pequenas esculturas de argila de cada orixá.


Os materiais foram dispostos em mesas, e a oficina começou com Mãe Zana desenhando a lápis uma folha de papel, enquanto rememorava as configurações espaciais, materiais e paisagísticas que o terreiro teve, desde sua fundação, sob gestão de Mãe Nega, até o momento da destruição. A Ialorixá distinguiu duas configurações principais: a primeira, que vai até o período entre o falecimento de Dona Nega (final dos anos 1990) e o início das obras públicas na região, e a segunda, já a partir de meados da década seguinte. Assim, Mãe Zana desenhou as duas versões em papéis diferentes, indicando os elementos de mudança. Não foram usados instrumentos de escala ou desenho geométrico, valorizando a representação construída pela Ialorixá e Filhos de Santo do terreiro, em que as variações no tamanho dos elementos representados e na sua posição nas folhas indicavam ênfases, significados e relações sociais com a vizinhança.


Boa parte das memórias que permitiam descrever os espaços, lembrar as localizações de elementos e registrá-los em desenhos referiam-se a histórias vividas no terreiro, seja em eventos específicos – como as festas –, seja em momentos cotidianos. Mãe Zana, ao desenhar a vegetação existente, disse: “ Eu lembro do pé de banana porque eu botei o periquito do Danilo aqui e morreu”, ativando a lembrança, hoje calorosa, do convívio naquele espaço.

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Fotos da oficina de produção da maquete do Ilê Asé Odé Ibualamo, em que participaram Mãe Zana, Dona Sueli, seu neto e sua neta, Tomaz, Derick e a equipe de pesquisa. O objetivo foi trazer as memórias vividas no espaço como forma de recuperar aspectos de sua materialidade e significados.

Fonte: equipe de pesquisa.

Em outras partes do Ilê, as fotos ainda existentes contribuíam para complementar a descrição de uma área: “Aqui era a porta da cozinha, descia uma escadinha assim, ó, aí tinha a área aqui. E a área aqui tinha uma outra escadinha aqui, com um portão que dava pra viela. Lembra? Tem uma foto lá do Danilo com o William, né, sentados nessa escadinha? Vou ver se eu acho. Pro William mandar a foto, que tem ele e o Danilo pequenininhos sentados na escadinha do terreiro”. Os nomes de vizinhas e vizinhos, que procuravam o terreiro para pedir vegetais ou frequentavam a casa em dia de distribuição de alimentos, eram também importantes marcadores do espaço.


Enquanto Mãe Zana contava e desenhava as configurações do terreiro, Dona Sueli, Tomaz e Derick produziram as representações de ibás, além de auxiliarem com lembranças específicas de certos pontos da casa. As pesquisadoras, além do registro da atividade, participavam dessas ações, à medida que a Ialorixá ia designando as tarefas.

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Oficina de produção da maquete do Ilê Asé Odé Ibualamo, em que participaram Mãe Zana, Dona Sueli, seu neto e sua neta, Tomaz, Derick e a equipe de pesquisa.

Fonte: equipe de pesquisa

A oficina durou cerca de pouco menos de três horas, e a maquete foi levada por uma das pesquisadoras, Sarah, para ser finalizada. Ela retornou a Carapicuíba em mais duas ocasiões, para ajustar detalhes com Mãe Zana, sendo uma das vezes acolhidas na Associação Cultural e Assistencial São Cosme e Damião, fundada por Mãe Iraildes, com a presença dela e de Vera, Iabassê do Ilê Axé Nitá Nirê. A maquete foi então fotografada, com todos os elementos de argila inseridos em suas posições, sendo referente à configuração que o Ilê Asé Odé Ibualamo tinha no momento de sua demolição.


As reproduções de paredes e ibás não trazem de volta o terreiro – e nem poderiam – mas contribuem com a manutenção da comunidade, por meio de seu autorreconhecimento e da produção de documentação sobre o Ilê, e com a compreensão dessa materialidade, que pode auxiliar nos processos de estudo e tombamento de outras edificações e paisagens culturais relacionadas a territórios negros nas cidades e ruralidades brasileiras.

A maquete do terreiro, com a configuração existente no momento de sua demolição, em dezembro de 2022, foi finalizada com empenho de Mãe Zana e da pesquisadora Sarah, que realizaram encontros para resolver dúvidas e posicionar as representações dos orixás no modelo. O último encontro ocorreu na Associação Cultural e Assistencial São Cosme e São Damião, com a presença de Mãe Iraildes e Vera.

Fonte: equipe de pesquisa.

A REDE DE UNIDADES TERRITORIAIS TRADICIONAIS NA FORMAÇÃO DA CIDADE

Um terreiro jamais é apenas um terreiro. Sua existência é precedida por aqueles e aquelas de quem herdou tradições, linhagens, lutas e energias. Sua presença no território é ainda a continuidade dessa articulação de vizinhanças e famílias biológicas e espirituais. Cada terreiro é a semente de novas casas. Mãe Zana e Bryan recontam esses processos, como no caso de uma pessoa, vinda da Bahia e acolhida pelo Ilê, que depois abriu seu próprio terreiro, em outro ponto de Carapicuíba. Os troncos familiares são verdadeiras redes de aprendizagem, recepção, convívio e circulação, que ultrapassam fronteiras municipais e estaduais, dando novos sentidos ao território.

No caso do Ilê Asé Odé Ibualamo, sua Ialorixá é da hierarquia do Terreiro da Casa Branca do Engenho Velho (Ilê Axé Iyá Nassô Oká), na Bahia, o mais antigo do Brasil e primeiro monumento de culto religioso negro a ser tombado como patrimônio pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), em 1984. As conexões dos troncos familiares e os roteiros de trânsito entre o Nordeste e o Sudeste do país misturam-se aos fluxos populacionais internos, que tiveram grande impacto na demografia e formação territorial, econômica e cultural de todo o país, especialmente desde as primeiras décadas do século 20.

De África, muitas linhagens se formaram na Bahia e outros atuais estados nordestinos, chegando a cidades como Rio de Janeiro e São Paulo, articulando-se ainda com trânsitos entre as capitais e os interiores, em que se entroncavam populações negras, oriundas de fazendas e áreas rurais. E todos esses movimentos continham e ainda contêm aprendizados, continuidades e transformações. Nas palavras de Mãe Zana:

E a gente forma dentro do terreiro. É como a universidade. A gente tem um processo de formação daquele terreiro que compreende cerca de sete anos. É um período mínimo de formação. Quando chega esses sete anos, você pode abrir o seu terreiro. Alguns são predestinados a isso. Então já vai se formar uma nova comunidade de terreiro, mas já levando a ancestralidade daqui da onde nasceu, como foi a minha mãe. Ela veio pra Carapicuíba, mas ela já veio trazendo a ancestralidade lá de Canavieiras, que já foi trazida de África. Olha só!

Nos primeiros anos de chegada da família de Mãe Zana em Carapicuíba, outros terreiros, de linhagens distintas, já ocupavam o território. De cabeça, a Ialorixá enumera quase dez casas, incluindo a de Mãe Iraildes (Iraildes Pereira Rosa), Ialorixá do Ilê Axé Nitá Nirê, grande articuladora de terreiros e outros espaços de cultura de povos de matriz africana na cidade e municípios próximos. A septuagenária Mãe Iraildes conheceu Zana ainda jovem, com cerca de 17 ou 18 anos. Uma Filha de Santo de sua mãe comprou itens religiosos na loja de Mãe Iraildes (Casa de Velas São Cosme e Damião, ainda existente, localizada na avenida Inocêncio Seráfico, número 1.813, Vila Silva Ribeiro) e, no momento da entrega, a Ialorixá descobriu tratar-se de um terreiro. Desde que se conheceram, ela lembra de Mãe Zana sempre lutando, sempre trabalhando, levando adiante a tradição de matriz africana.

A mãe biológica e espiritual de Mãe Iraildes era também originária da Bahia e faleceu em 2022, com mais de 90 anos. A Ialorixá instalou seu terreiro no bairro de Novo Horizonte, em Carapicuíba, e posteriormente recebeu a doação do terreno vizinho, de propriedade de uma família de imigrantes japoneses, com a qual ela ainda mantém contato. Descendentes dessa família, segundo Mãe Iraildes, possuíam uma pastelaria no centro de Osasco e negócios em São Bernardo do Campo (cidades da Região Metropolitana de São Paulo). Atualmente, são médicos, e ela chegou a operar os olhos de maneira quase gratuita, em clínica localizada na rua Bela Cintra, bairro nobre da capital – outro oferecimento da família.

A escritura do terreno em que hoje se encontra a Associação veio num dia  Caruru. Mãe Iraildes encabeça, há mais de 40 anos, a realização da Festa de São Cosme e São Damião em Carapicuíba, a cada dia 27 de setembro, com a participação das comunidades católicas e afro-brasileiras, sem nenhuma ajuda do Estado. O município tinha 47,54% de sua população declarada negra ou parda no Censo de 2010 (esse dado ainda não foi divulgado por município para o Censo 2023). Na formação da cidade, a Associação Cultural e Assistencial São Cosme e Damião – vinculada ao terreiro de Mãe Iraildes –, entidade sem fins lucrativos, é a principal responsável pela organização da festa, que reúne ainda outras comunidades e territórios negros da região. A Mãe de Santo, também fundadora da Associação, ressalta a importância da celebração, da qual costumam participar mais de 2.000 crianças de diversas comunidades, a maioria delas em situação de vulnerabilidade.

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Bryan: Aqui um pouco da juventude do terreiro: eu, Ofacilomy, e os Iaôs Tomaz, Jéssica, Derick e a Ekedy Nayara.

Fonte: acervo da comunidade.

A Festa de Cosme e Damião de Carapicuíba é realizada por meio da articulação das Mães de Santo e dos Pais de Santo da cidade. A celebração é vetor da organização da comunidade afro-brasileira de Carapicuíba, reunindo terreiros, quintais, cozinhas, associações assistenciais e lojas de artigos religiosos de matriz africana. As atividades são centrais na manutenção dos cultos e rituais de candomblé e umbanda na cidade, além de formarem uma rede territorial de vizinhança, apoio e articulação política e religiosa, que ademais tem laços com outros territórios pertencentes à hierarquia dos terreiros de Carapicuíba, marcadamente no estado da Bahia, onde há também outro terreiro da própria Mãe Iraildes.

Em 2023, a aconteceu aconteceu no galpão da Associação Nipo-Brasileira de Carapicuíba, próxima à loja de artigos religiosos de Mãe Iraildes. A entidade foi fundada nos anos de 1980 e oferece aulas de japonês, judô e outras atividades relacionadas à cultura nipônica. Na ocasião, entre outras ações, foi Mãe Zana quem fritou o acarajé servido ao final da festa.
 

A rede formada por terreiros e outros lugares de cultura de povos de matriz africana marca a organização do território, das famílias consanguíneas ou não e dos deslocamentos dentro e fora das cidades. É notável a construção dessa articulação diversa, que extrapola os limites municipais e forma-se a partir das relações de recepção e assistência entre grupos que protagonizam grandes fluxos migratórios – alguns ainda em movimento. É o encontro de populações por meio do reconhecimento de elementos comuns em suas trajetórias: os japoneses foram também, em outros momentos históricos, vítimas de perseguições ao chegarem em cidades e bairros brasileiros, marcadamente do estado de São Paulo.

Hoje, parte desses descendentes dedica-se a oferecer auxílios não apenas à sua comunidade, mas também àquelas que passaram e ainda passam por processos semelhantes. Essa prática conflui com a própria cultura negra no Brasil: “A tradição de matriz africana traz para nós um bem-estar muito grande, porque a gente ajuda também: recebe daquilo que também a gente planta”, nas palavras de Mãe Iraildes.

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Evento realizado no âmbito do projeto “A destruição do terreiro Ilê Asé Odé Ibualamo: patrimônios e caminhos de reparação”, em novembro de 2023, reunindo Ialorixás e Babalorixás de Carapicuíba e região, estudiosos e profissionais do campo do patrimônio, entidades políticas e comunidade do Ilê. Na ocasião, foram apresentados instrumentais para o reconhecimento dos terreiros como referências culturais, principal tema de debate.
Fonte: equipe de pesquisa.

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Participação de Mãe Zana, junto a Laudessandro Marinho da Silva, na mesa “Paradigmas nos patrimônios negros: os casos do Ilê Asé Odé Ibualamo e dos Quilombos do Vale do Ribeira”, em evento organizado por DPH-SP, Condephaat e Iphan.
Fonte: equipe de pesquisa.

A FAMÍLIA PATERNA DE MÃE ZANA: RELATO ORAL

Texto escrito por Edivaldo Pinheiro de Jesus, pai biológico de Mãe Zana de Odé, a partir de relato oral de seu pai, Manoel João Pinheiro, avô da Ialorixá.

História da família Pinheiro, segundo relato do meu pai, Manoel João Pinheiro. O pai dele veio do Norte da África, por volta do ano 1909, e a mãe dele, ou seja, minha avó, já veio gestante. Ele nasceu no estado da Bahia, em uma antiga vila, que em seguida se tornou uma cidade chamada Nazaré das Farinhas (atual município de Nazaré, próximo a Salvador e uma das primeiras áreas da ocupação colonial).

Os avós dele viveram como escravos aqui no Brasil e, após a abolição dos escravos, eles conseguiram que meus avós viessem pra cá ainda cativos, mas já sem o uso de correntes e chicotadas. Mas, como todos nós sabemos, a escravidão nesse nosso país nunca esteve ausente da vida dos menos favorecidos. Meu pai, por exemplo, chegou a ter que retirar o pagamento dele referente aos trabalhos prestados em uma fazenda de um magnata da boca do cano de uma espingarda que o patrão segurava com o gatilho acionado, se ele quisesse receber. Na época, ele já tinha família, ou seja, esposa e filhos, e precisava levar o sustento para casa. Então, ao acertar as contas com o patrão, ele anunciou que iria embora para onde estava a família e não iria mais voltar. O patrão ficou enfurecido e o ameaçou dizendo: “Trabalhador bom não sai da minha fazenda, mas, se você quer sair, então venha pegar seu dinheiro”.

O meu pai era, assim como a maioria dos jovens da época, destemido. Foi e retirou o dinheiro da boca do cano da espingarda, mas, ao retornar para o barraco, um senhor que vivia na fazenda há muitos anos e já não trabalhava mais por causa da velhice e porque o patrão não o deixava sair, porque ele sabia demais e vivia sob ameaças, perguntou: “Você vai continuar trabalhando?”. E o meu pai lhe disse: “Não, vou levar o sustento da minha família e não volto mais aqui”.

Então o velho, que gostava muito dele, pois ele o ajudava sempre que ele precisava, o alertou de como ele poderia sair vivo de lá. O patrão havia perguntado pra ele a hora que ele iria sair no dia seguinte e ele o informou. No outro dia, na hora em que havia informado o patrão que iria embora, o velho o levou até um ponto estratégico e o preveniu, mostrando pra ele: “Olha lá onde vai os capangas!”. Lá iam dois jagunços em direção ao caminho que ele iria passar, para matá-lo, tomar o dinheiro e levá-lo de volta para o patrão.

E da parte da minha mãe, a história que eu sei é a seguinte: a mãe dela era indígena, não sei o nome da etnia, só sei que era da região Nordeste e que foi casada com um português vindo de Portugal. Dessa união nasceu a minha mãe: Antônia Maria de Jesus, que viveu com o meu pai, Manoel João Pinheiro. Tiveram 10 filhos, entre eles, este que vos escreve, Edivaldo Pinheiro de Jesus. 

Tive o privilégio de acompanhar a luta do meu pai, que trabalhava pelas fazendas para conseguir nosso sustento honestamente. Não só acompanhei sua trajetória, como trabalhávamos juntos, mesmo ainda criança. Em uma destas fazendas, de nome Atalaia, seu proprietário era Marcelo Gideon, oriundo de família italiana. Nós cultivávamos variados tipos de lavoura, como mandioca, feijão, hortaliças em geral, bananas, café etc. E, após algum tempo, o proprietário propôs um acordo com os agricultores, que era o seguinte: ele não cobrava nada pelo o uso das terras, mas a pessoa ficava com a responsabilidade de plantar, junto com o plantio, o cacau. Então, quando a lavoura cacaueira estivesse dando frutos, o agricultor teria que encerrar, ou seja, parar de produzir as plantações que seriam o seu sustento.

Se a maldade do fazendeiro parasse por aí, estaria tudo bem, porque, na época, não havia os insumos que faziam que o cacau começasse produzir a partir de dois anos. O cacau começava dar frutos só após os quatro, cinco anos. O problema foi que, quando ele viu que os agricultores, principalmente o meu pai, que nós que tínhamos a maior área cultivada, mandou cercar a fazenda com arame farpado, para proteger as propriedades vizinhas, e soltou uma imensa quantidade de bois de corte à deriva na fazenda. Então os animais invadiram todas as nossas plantações e, em pouco tempo, devoraram tudo que havíamos cultivado com tanto esforço e dedicação.

Nesta época, o município pertencia a Ilhéus, que era uma espécie de capital da Bahia, quase não havia outros municípios. Só se falava em Salvador e Ilhéus. Então, meu pai viajou para a cidade pra registrar uma queixa, e o processo durou alguns dias, quando o juiz deu o caso por encerrado. Meu pai recebeu uma vultosa indenização, que deu para ele comprar um cobertor, umas comprinhas (alimentos) para casa, e o dinheiro que sobrou ele aventurou no jogo do bicho, e não ganhou nada.

Mas não pensem, senhores/as leitores/as, que episódios assim aconteceram só conosco: era uma prática rotineira dos fazendeiros da época. E, assim, muitos se tornaram grandes latifundiários, enquanto a pobreza se alastrava Brasil afora.
 

Mesmo depois que eu já estava na lida sozinho, com meus 13 anos de idade, trabalhando pelas fazendas, ainda aconteceu comigo. Eu havia plantado uma área de aproximadamente 2 mil metros nas mesmas condições, só que em uma fazenda chamada Santa Maria. Não me lembro o nome do proprietário nesse momento. Mas qual foi a prática que ele usou para com os trabalhadores, inclusive comigo?

Provocou atraso no pagamento de todo mundo, de propósito, e, num final de semana, chegou na fazenda com um tal de escriturário, se mostrando muito simpático, e convenceu a todos a assinar um recibo em branco, como se estivesse recebendo todo o pagamento atrasado. Segundo ele, era para, na semana seguinte, não ter atraso. Ele iria enviar o dinheiro para o administrador efetuar os pagamentos de todo mundo. Ele ainda adiantou o pagamento de uns dois com os recibos preenchidos certinhos para certificar que os outros também seriam do mesmo jeito. Todo mundo acreditou e assinamos.

Agora vem a surpresa: quando fomos receber o pagamento, os recibos que havíamos assinado em branco estavam escritos que aqueles pagamentos se referiam, além dos serviços prestados, a uma indenização que estávamos recebendo pelas áreas plantadas, sem termos o direito de sequer colher uma espiga de milho ou arrancar um pé de mandioca.

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