Todas as falas atribuídas a integrantes da comunidade do Ilê Asé Odé Ibualamo e do Ilê Axé Nitá Nirê, em aspas ou como citação indireta, foram colhidas durante entrevistas e atividades realizadas ao longo do ano de 2023 pela equipe de pesquisa do projeto “A destruição do terreiro Ilê Asé Odé Ibualamo: patrimônios e caminhos de reparação”. Parceria: CAU/SP, Edital de Chamamento n. 005/2023, Termo de Fomento n. 020/2023. Realização: Escola da Cidade – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Plataforma de Pesquisa Nas Ruas: territorialidades, memórias e experiências.
O Ilê Asé Odé Ibualamo foi constituído e plantado seu axé às margens do córrego do Cadaval, cujas águas, na década de 1980, corriam por cerca de 10 quilômetros de extensão. Naquele tempo, na gestão de Mãe Nega, mãe biológica de Mãe Zana de Odé, ainda era possível ver pequenos peixes nas águas de Oxum. Além do córrego, que era a vida do lugar, a região de Carapicuíba era toda irrigada por muitas nascentes e minas d’água. Segundo a atual Ialorixá, era um lugar que tinha “as condições que a gente necessitava para instalar o terreiro: folhas, água e natureza em abundância”. Dona Nega identificou no terreno plantas ligadas aos orixás e optou pela preservação das espécies para que não fossem tiradas durante o processo de plantação dos axés e da estruturação do lugar para a Unidade Tradicional.
A Mata Atlântica, que bordejava o córrego, dominava a paisagem com suas árvores nativas e frutíferas. Nesses tempos, o terreiro era cheio de pés de manga, banana e abacate, além do plantio de milho, taioba, entre outras plantas que eram comumente usadas na culinária tradicional e para as oferendas aos orixás.
O terreiro tinha à disposição ervas de chá, de condimentos, de proteção e medicinais para curas, defumações e banhos. Louro, erva-doce, arruda, lavanda, folha-da-costa, folhas de manga, boldo, espada-de-são-jorge, entre outras, eram utilizadas nas obrigações religiosas e nas cerimônias de cura, o que requer das Ialorixás e Babalorixás, profundos conhecimentos etnobotânicos, biomíticos e espirituais.
O local escolhido para fundar o Ilê Asé Odé Ibualamo era, nas palavras de Mãe Zana, “muito bonito, muito verde” e com várias nascentes. “Do outro lado da rua, a gente ia buscar água na nascente, na mina, e tá lá até hoje, só que construíram casa em cima dela. A maior parte do terreiro foi construída com água da mina. O rio ainda era limpo e era um fiozinho só. Acho que tinha uns 60 a 80 centímetros de espessura."
A presença de vegetação e a possibilidade de plantio são aspectos centrais para a reprodução da cultura e religiosidade candomblecistas, já que as festas e rituais envolvem a produção e compartilhamento de alimentos e chás. Mãe Iraildes, Ialorixá do Ilê Axé Nitá Nirê, importante terreiro de Carapicuíba e também fundadora da Associação Cultural e Assistencial São Cosme e São Damião, enumera a taioba, o bredo e a mandioca, ingredientes do caruru, comida própria da Festa de Cosme e Damião. A Iabassê (cuidadora e conhecedora dos alimentos e alimentação tradicional e do culto) Sueli, do Ilê Asé Odé Ibualamo, descreve cada festa a partir dos alimentos preparados para os orixás correspondentes: “Tinha Olubajé, que a gente fazia comida do Omolu. É como se fosse um ebó pro mês de agosto. Tinha em junho a feijoada do Ogum, que era muita fartura também, uma coisa muito boa porque feijoada é muito bom, né! E agora dia 30 de outubro, que era Cosme e Damião. Então era uma coisa assim!”, termina fazendo um gesto de abundância, indicando a grande quantidade de comida servida nas celebrações. Quiabo, abóbora, peixe, frango, vatapá, acarajé – toda uma variedade de alimentos.
Na primeira configuração de seu Ilê, Mãe Zana conta que havia frutas e outros vegetais usados no preparo dos pratos dos orixás. A comunidade chegou a plantar milho e folhas, como taioba. No terreiro, preferencialmente não se cozinha com ingredientes industrializados, então ervas e condimentos precisam ser plantados no terreno ou em potes, se não houver espaço. Em sua casa, ela relata que existiam plantios de erva-doce e louro, por exemplo. Quando as obras de canalização fizeram com o Ilê perdesse toda a área do terreiro e mais partes abertas, com chão de terra, tornou-se impossível manter boa parte dessas plantas.
Com a desenfreada urbanização do município e o progressivo aumento da população que se instalou na região sem planejamento e saneamento básico, o córrego do Cadaval ficou completamente poluído, assim como as nascentes da região. Quanto à Mata Atlântica, ela foi derrubada para dar lugar às moradias e obras urbanas. As enchentes passaram a ser frequentes em época de chuvas, por conta da mudança no regime e escoamento das águas do córrego do Cadaval e outros rios da região. Mãe Zana atenta para a força das águas, que resistem aos sufocamentos e seguem buscando seu curso natural: “A natureza também revida, porque ela precisa, ela procura de novo o seu lugar”.
As águas eram parte do que se pode chamar de “paisagem cultural” daquela área, ou seja, de elementos materiais que conformam os usos e práticas da comunidade. E os frequentadores do Ilê preocupavam-se com a qualidade dos rios. Alguns anos atrás, Mãe Zana liderou uma campanha pela limpeza do córrego do Cadaval, chamada “O bicho vai pegar” e organizada junto com a Prefeitura. Fotos das crianças com roupas brancas e fios de contas foram feitas e havia imagens da iniciativa em pontos de ônibus da cidade. A ideia era conscientizar a população para que não jogasse lixo nos rios – mas não canalizá-los, pois o contato com as águas era vital: “Era limpar o rio, deixar o rio vivo, porque, quando você canaliza o curso d’água, você mata”, diz a Ialorixá. Para a comunidade, a natureza deve ser livre, assim como as pessoas. Dona Sueli, quando perguntada sobre o que gostaria de ter novamente desde a demolição do Ilê, enumera: plantas, folhas e água.
Quando a obra de canalização do Cadaval chegou ao terceiro trecho, em favorecimento do acesso a um shopping local, o terreno do Ilê foi drasticamente reduzido, ocasionando a perda de muitas árvores e o ocultamento do rio que corria a céu aberto. O córrego passou a ter cheiro forte e suas águas ficaram inutilizáveis. Como disse Mãe Zana, ao ser indagada pelo prefeito: “Claro que eu quero o progresso, só que o progresso pra mim, o desenvolvimento pra mim é qualidade de vida para as pessoas. Não existe progresso no município se você não priorizar a vida, não priorizar a saúde, não priorizar o bem-estar”. Pouco depois, o terreiro foi violentamente destruído. Atualmente, uma das vizinhas do terreiro guarda as plantas que sobraram.

Ervas medicinais plantadas no Ilê Asé Odé Ibualamo.
Fonte: Tomaz Oliveira dos Santos.

Iroko (iorubá) é guardião da ancestralidade e dos antepassados, é a força das variações meteorológicas e, ao mesmo tempo, floresta centenária. Ou o próprio coletivo de árvores grandiosas; seio da natureza, que é morada de todos os orixás; primeira árvore que se fez plantar na Terra. Em África, Iroko vive na árvore que leva seu nome. No Brasil, onde essa árvore não é nativa, foi-lhe atribuída a grandiosa gameleira branca.
Assentamento de Iroko com tronco de gameleira, destruído na demolição do Ilê Asé Odé Ibualamo, em 15 de dezembro de 2022.
Fonte: Tomaz Oliveira dos Santos.