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Todas as falas atribuídas a integrantes da comunidade do Ilê Asé Odé Ibualamo e do Ilê Axé Nitá Nirê, em aspas ou como citação indireta, foram colhidas durante entrevistas e atividades realizadas ao longo do ano de 2023 pela equipe de pesquisa do projeto “A destruição do terreiro Ilê Asé Odé Ibualamo: patrimônios e caminhos de reparação”. Parceria: CAU/SP, Edital de Chamamento n. 005/2023, Termo de Fomento n. 020/2023. Realização: Escola da Cidade – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Plataforma de Pesquisa Nas Ruas: territorialidades, memórias e experiências.

FESTAS E ATIVIDADES DO ILÊ

O Ilê Asé Odé Ibualamo, em todo o tempo de sua existência material e mesmo hoje, após a destruição física, promoveu atividades regulares relacionadas à religião, à vizinhança e ao bem coletivo. Essas ações estruturam-se no próprio proceder da cultura dos povos de matriz africana, como se vê pelo caráter de acolhimento e pela ênfase na segurança alimentar, que se conjuga com a importância das comidas em festas e rituais no terreiro. Dona Sueli, última Iabassê do Ilê antes da demolição, conta sobre a vizinha,  Angela, que perguntava sempre sobre a data da Festa de Cosme e Damião, ansiosa pelo caruru maravilhoso que era servido na ocasião.


Para a própria Iabassê, o terreiro era – ou o barracão, ao qual ela se refere mais frequentemente – sua vida. Em meio ao barulho de buzinas, carros e vozes de crianças, na varanda de sua casa, ela conta:


Eu tava triste ia pra lá, eu tava contente eu ia pra lá, era casa acolhedora, não só pra mim, mas pra todo mundo, pra todos filhos. Minha vida era ali dentro daquele barracão. A gente perdeu um vínculo muito grande que era a nossa casa, né? Então sempre eu tô falando pros meninos, sinto muita falta, muita falta de tudo e de todos que a gente tinha ali dentro. E era assim, era uma casa de alegria, porque quem chegava triste lá saía rindo, saía contente, saía alimentado.


Seu dia a dia de cozinheira no Ilê era abundante em ingredientes saudáveis para os pratos dos orixás: “Dia de segunda-feira nós fazia “flor do velho” – que que era a “flor do velho”? Era pipoca. Era os cuscuz, arroz doce, era canjica. Dia de sexta-feira, dia de Oxalá. E tinha o caruru, que é a comida de Cosme. E tinha tudo: do arroz ao vatapá, peixe, frango”.

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Mãe Zana: Caruru de Ibeji/Vunji, na década de 90, no antigo Ilê.

Fonte: acervo da comunidade.

Praticamente toda a vizinhança era servida pelo terreiro, não apenas pelas refeições diárias, oferecidas a quem entrasse no barracão, mas pela distribuição sistemática de centenas de cestas básicas, organizada pela rede de terreiros da cidade. Mãe Zana fez parte do desenho de várias políticas públicas pioneiras voltadas à segurança alimentar em Carapicuíba a partir da década de 1990, que posteriormente seriam lançadas no cenário nacional. Para receber e destinar as cestas, o terreiro mantinha um registro das famílias atendidas, ganhando grande conhecimento das comunidades – até mais do que o próprio poder público em alguns casos.
 

Mãe Zana: Entrega de cestas para alimentar a comunidade em torno do terreiro, na década de 1990, quando iniciamos a política de segurança alimentar no município de Carapicuíba.

Fonte: acervo da comunidade.

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Mãe Pequena e Iaô de Obá, alegres enquanto cozinhavam feijoada para a vizinhança.
Fonte: acervo da comunidade

No mês de Ogum, junho, eram servidas feijoadas para a comunidade. Várias eram as ocasiões de eventos beneficentes realizados pelo Ilê, que reuniam a comunidade e aqueles que eram parte da hierarquia. Bryan (Ofacilomy), próximo sucessor na linhagem de Mãe Zana, conta que a alegria era visível durante a feitura das comidas, em que participavam tanto Ialorixás como Iaôs. Em uma das ocasiões, ele próprio fotografou o trabalho das cozinheiras, ao ver a alegria que emanavam:

Nessa foto aqui, era Mãe Pequena. Era a Mãe Pequena da casa, minha avó, que faleceu, e ao lado dela é a Iaô de Obá, que tava ajudando nas comidas. Nessa foto, eu acho muito interessante porque é bem notável a felicidade delas. A minha avó, que era Mãe Pequena da casa, toda vez que era pra fazer qualquer ação beneficente – tanto a Feijoada, tanto a Cura das crianças – mostra aí. Eu lembro que eu tirei essa foto e eu tirei porque elas estavam rindo tanto, conversando tanto… E bem entrosadas, assim, com o que tava acontecendo. Então é notável ver aí estampado no sorriso delas a felicidade de tá usando a comunidade, tá alimentando os povos.

Para realizar as ações, como a Feijoada do Bem, a comunidade do terreiro conversava com os comerciantes locais, que ajudavam com o que pudessem. Em média, eram servidas de 300 a 400 porções.

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​Imagens da Feijoada do Bem, realizada em outubro de 2016.

Fonte: Acervo da comunidade

Para as crianças, o Ilê era especialmente importante, sendo um lugar que podiam frequentar, se alimentar e conviver com mais pessoas velhas. Muitas das crianças e jovens que frequentam esse e outros terreiros estariam em condições de grande vulnerabilidade se não fosse a existência desse acolhimento. O filho biológico de Sueli, ainda bebê, ficou recolhido com ela em sua obrigação, em 2010, na qual passou 14 dias no barracão. Ela se lembra com alegria dele entrando dentro de um tabuleiro de pipoca. Mesmo aqueles não iniciados eram bem-vindos e tinham ali uma alternativa de sociabilidade – algo tão significativo em regiões periféricas, com pouca ou nenhuma área de lazer pública, praça ou equipamento público de qualidade, e a constante preocupação com violência e abuso de drogas: “O terreiro tem um papel tão fundamental na construção da juventude de periferia, mas tão fundamental, até mais que a própria universidade e escola. Porque é lá que esses jovens aprenderam que a droga não é o caminho”, de acordo com Mãe Zana.

Qualquer pessoa que chegasse ao Ilê era recebida, mas as mulheres são parte central da rede de vizinhança e acolhimento do Ilê. São elas que participam principalmente das atividades relacionadas à cozinha, grande ponto de encontro e conexão entre quem frequenta a casa. Mãe Zana, Dona Sueli e Bryan relatam que a mulherada passava horas conversando e dando risada, além de ser aquele um lugar de refúgio para aquelas que sentiam solidão ou quem tinham maridos agressivos. Uma das frases mais repetidas pelas pessoas que frequentaram o Ilê é: ali era uma família.

Dona Sueli é merendeira escolar da Prefeitura há mais de 25 anos e sempre gostou de cozinhar. Quando começou a ir ao terreiro, depois que um de seus filhos passou a frequentar, ficava observando Tia Maria, Iabassê da casa do avô de Mãe Zana, em ação. Ela pedia para ajudar, e a cozinheira dizia que perguntasse à Ialorixá. Mãe Zana apenas instruía que Sueli vestisse “um pano de cabeça e uma saia”, e logo ia ela para a cozinha. Foi por gostar da casa que Dona Sueli decidiu virar Filha de Santo, levando suas filhas na sequência. Hoje, a Iabassê conta que vive triste pela falta do espaço, onde, às vezes, chegava a passar três dias, apenas nas atividades regulares, nas conversas e no fogão. O terreiro era o único lugar para onde ela ia regularmente, encontrando amigas, como a avó de Bryan, que mandava alguém avisá-la quando estava se encaminhando para lá.

Comunidade do Ilê Asé Odé Ibualamo reunida em atividades do terreiro.
Fonte: acervo da comunidade.

Comunidade do Ilê Asé Odé Ibualamo reunida em atividades do terreiro.
Fonte: acervo da comunidade.

O terreiro era também um lugar de outros laços afetivos, sendo ponto de encontro para comemoração de aniversários, mesmo em meio às funções. Segundo Bryan, durante uma celebração as pessoas cantavam parabéns rapidamente e seguiam as atividades, sem deixar passar a data. O Ilê era espaço aberto de troca com os vizinhos, desde o tempo de Mãe Nega: uns vinham levar açúcar e café, outros traziam costela e mais outros ainda aproveitavam as hortas. As obras não destruíram apenas a materialidade do Ilê, e sim os modos de vida e sustento de um grande número de famílias.

Pessoas com formações variadas conviveram no Ilê Asé Odé Ibualamo, emprestando suas habilidades para a comunidade e o funcionamento do terreiro. A própria comunidade cozinha, faz pinturas, constrói, entre outras atividades. É um verdadeiro espaço formativo – e quem não sabe fazer algo, logo aprende e faz.

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Entrega de bolo, no ano de 2016, na viela que passou a ser a entrada do Ilê após o início das obras de canalização do córrego do Cadaval, que resultaram na perda da parte do terreiro voltada para a avenida Felisberto Pereira Santiago. Mesmo com a redução significativa da área, a comunidade se reorganizou para prosseguir com as atividades religiosas e de acolhimento.

Fonte: acervo da comunidade.

A preocupação da comunidade com a vizinhança e os frequentadores se estendia também ao território. Anos atrás, já com intervenções públicas no curso do rio, Mãe Zana promoveu uma campanha, chamada “O bicho vai pegar”, pela limpeza do córrego e conscientização da população para a necessidade de não poluir o corpo d’água com lixo. Mãe Zana afirma que é preciso analisar a ideia de progresso de obras como a da canalização do córrego do Cadaval, pois essas intervenções frequentemente destroem as casas e as vidas dos habitantes locais. Ela se preocupa com o quanto cursos como Arquitetura e Direito promovem esse tipo de destruição:

O jovem tá lá aprendendo a não olhar pras pessoas: a olhar pra quanto de recurso você vai conseguir captar com a instalação daquele projeto urbanístico, arquitetônico, naquele lugar. Durante todo esse processo de luta e tudo, eu fiz dezenas de pesquisas pra entender por que que as obras chegam nos municípios e nas favelas, nas periferias, destruindo as pessoas. E aí, eu li muito, muitos artigos científicos, muitas teses de doutorado, de mestrado, enfim, e eu não encontrei em nenhuma delas, em nenhuma delas, qualquer que seja, uma nota pequena que seja, que tenha uma preocupação evidente com as pessoas. Com a história das pessoas. A preocupação colocada nessas teses, que é absorvida do ensinamento que as pessoas têm em sala de aula, é: melhoria de vida, qualidade de vida. Mas qual qualidade? Porque me perguntaram que tipo de vida que eu gosto de ter e qual é a qualidade que pra mim é bom? Não fizeram essa pergunta. E não fazem essa pergunta pra ninguém. As obras chegam, tiram você da tua raiz, te colocam num ambiente que você não tem nenhuma conexão, que você nunca vivenciou, que é um quadrado, com duas, três separações, chamado de apartamento. Te colocam lá dentro, te obrigam a viver isolado das pessoas, e diz pra você: “Esse é o teu formato de qualidade de vida”. Isso não é qualidade de vida.

A própria defesa do Ilê frente às ameaças de destruição foi feita por meio de sua comunidade em rede. Nos anos 2010, Mãe Zana já estava atenta ao andamento das obras públicas, que atingiam outro trecho, distante do terreiro. Nessa época, já havia um grupo de Ialorixás e Babalorixás envolvidos no acompanhamento e participação das ações da Prefeitura e integrantes de diversos Conselhos. Esse coletivo redigiu e aprovou projetos de lei na Câmara Municipal de Carapicuíba e seguiu para a atuação em nível federal.

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Bryan: Aqui estamos numa caminhada contra o preconceito, o racismo e a intolerância.

Fonte: acervo da comunidade.

A gente conseguiu que Carapicuíba fosse a primeira cidade do Brasil que tivesse tido uma legislação específica para os povos de matriz africana. Essa legislação foi escrita por nós, dentro da casa da Mãe Iraildes [Ilê Axé Nitá Nirê], numa tarde chuvosa. Reunimos as representações dos povos e redigimos essa legislação, que a gente já tinha formado, porque lá tinha a questão de soberania alimentar dos povos. E construímos o primeiro plano de desenvolvimento sustentável para povos de comunidades tradicionais de Carapicuíba.

Pouco depois, Mãe Iraildes foi para Brasília, representar os povos na Primeira Conferência Nacional de Igualdade Racial, tendo participado da construção do Estatuto da Igualdade Racial no Brasil. O grupo se conectou com a Conferência de Turba, por meio de uma representante de Guarulhos, e se fortaleceu ainda mais com a criação do Fórum Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional dos Povos de Matriz Africana (FONSANPOTMA), articulando outras cidades, como Osasco, Barueri e Itapevi.

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Mãe Iraildes e Vera, Ialorixá e Iabassê do Ilê Axé Nitá Nirê respectivamente, participando da 6ª Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, promovida pelo governo federal em 2023.

Fonte: acervo da comunidade.

Apoio:

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